Capítulo 4 – A Arca de Noé: uma alegoria que representa o corpo humano

AutococonhecimentoCapítulo 4 – A Arca de Noé: uma alegoria que representa o corpo humano

Capítulo 4 – A Arca de Noé: uma alegoria que representa o corpo humano

Fílon de Alexandria estudou e refletiu sobre as Escrituras e, para explicar as passagens nelas contidas, fez uso de alegorias – “um dos estilos de figuras de linguagem de uso retórico e que produz uma virtualização do real significado, não se atendo apenas ao sentido literal da obra, mas se aprofundando em outros sentidos”, segundo dicionários da Língua Portuguesa.
Isto não significa que ele não aceitava a letra da Bíblia. Entretanto, para ele, o sentido literal está num plano inferior à interpretação alegórica por alcançar a própria alma da mensagem, sendo ambos revelações divinas. Fílon considerava-se divinamente inspirado por fazer a interpretação alegórica das Escrituras.
Ao explicar as passagens referentes à Arca de Noé, por exemplo, Fílon afirma que devemos ver nela o próprio desenho do corpo humano:
a) A arca foi construída sobre suportes quadrangulares. A figura do quadrilátero, onde quer que seja colocada, mantém-se firmemente no lugar, uma vez que todos os ângulos são retos, fazendo do quadrilátero uma figura geométrica perfeita.
Assim também Fílon concebe que o corpo humano é muitíssimo perfeito, impecável.
b) Os membros constituídos pelas partes reduzem a forma quadrangular à circular. Ex.: no caso do tórax, os pulmões são antes quadrangulares; o estômago, antes de ter-se inchado de comida ou em razão da intemperança; os braços e as mãos, as costas, as coxas e os pés têm em comum uma forma quadrangular junto com uma forma esférica.
Quais as semelhanças entre o corpo humano e os ninhos que foram feitos na arca?
“O corpo humano é inteiramente perfurado como um ninho, e cada uma de suas partes é construída como um ninho, dado que uma força respiratória as penetra desde as suas respectivas primeiras partes: os olhos são, em certo sentido, orifícios e ninhos, nos quais se aninha a visão; os ouvidos são outros ninhos, nos quais se aninham os sons; as narinas são um terceiro tipo de ninho, no qual se aninham os aromas.
“Um quarto tipo de ninho, maior que o precedente, é a boca, na qual, novamente, se aninham os sabores. E ela foi feita grande porque outro grande órgão da voz articulada se aninha nela, isto é a língua, que, como disse Sócrates, articula e forma a voz quando golpeia e toca ora aqui ora ali, tornando-as verdadeiramente racional”.
Segundo Fílon, há ainda os seguintes ninhos:

  • o ninho do cérebro, que se chama dura mater.
  • o tórax é o ninho dos pulmões e do coração.
  • os pulmões são o ninho da respiração.
  • o coração é o ninho do sangue e da respiração.
    Acrescenta ainda: “E tanto a parte mais firme como a mais macia são ninhos em certo sentido e nutrem seus pintinhos, os ossos (…)”.
    Até mesmo as dimensões da arca (300 côvados será o comprimento da arca, 50 côvados sua largura e 30 côvados sua altura) têm um sentido alegórico, pois devem ser consideradas e compreendidas “simbólica e corretamente” como sendo a descrição da constituição de nosso corpo e sua proporção exata: 300 são 6 vezes 50 e 10 vezes 30, enquanto 50 são 5/3 de 30. “(…) se alguém tomar um cordão e esticá-lo desde a cabeça até os pés, constatará que o cordão é 6 vezes mais longo que a largura do tórax, e 10 vezes mais longo que a espessura das laterais do corpo, e que a largura equivale a 5/3 da espessura”.
    E mais: “A arca foi completada em um côvado acima, pois a parte superior do corpo imita a unidade; a cabeça, como a acrópole de um rei, tem por ocupante o intelecto soberano”.
    Sobre a porta colocada a um lado da arca, Fílon esclarece: “representa a estrutura humana através da qual os excrementos se eliminam. Isso é excelente, pois, como dizia Sócrates – ensinado por Moisés ou movido pelas coisas mesmas -, o Criador, respeitando a decência de nosso corpo, pôs os orifícios de passagem dos canais na retaguarda dos sentidos, a fim de que não sentíssemos aversão a nós mesmos e não olhássemos algo tão vergonhoso quando nos purificássemos dos resíduos carregados de bile. Por essa razão, Ele cercou e fechou tal passagem com as partes traseiras como que por meio de montículos elevados; e as nádegas foram feitas macias também para outros usos”.
    E as semelhanças continuam:
    O pavimento térreo para compartimentos, um no meio e um terceiro em cima são “os receptáculos de comida, dado que a comida é corruptível, e a corruptibilidade pertence à parte inferior porque é carregada para baixo. Pois apenas uma pequena quantidade de comida é distribuída de uma parte a outra do corpo, e por meio disso nós nos nutrimos, ao passo que a maior parte é separada e posta para fora no excremento”.
    Os intestinos “são os compartimentos de segundo e de terceiro pavimento. (…) se Ele tivesse feito deles receptáculos diretos de comida do estômago para as nádegas, poderia ter ocorrido carência, desejo e fome contínuos, além de evacuação instantânea”.
    Segundo Fílon, o fato de a arca ter sido “fechada por fora” tem o propósito de explicar a constituição da pele do nosso corpo, que é “fechado” na parte externa por uma pele rígida, que está posta em volta dele como cobertura para todas as partes, como uma “vestimenta para que o frio e o calor não tivessem potência para fazer mal algum”.
    Quanto à passagem de que “a arca é levada sobre as águas”, tem, na visão do hierofante, o seguinte significado: “nosso corpo deve, em certo sentido, cruzar o oceano e ser sacudido pelas necessidades, superando a fome e a sede, o frio e o calor, pelos quais é jogado para cima e para baixo, é perturbado, é movido”.
    Já os sentidos físicos são semelhantes a janelas do corpo por meio das quais apreendemos as coisas sensíveis. Estas, após afetarem os sentidos, penetram o intelecto, “e, novamente, o intelecto estica-se para entender estas através daquelas”.
    E Fílon faz ainda interessantes comparações:
    “- A visão está especialmente ligada à alma e também é íntima da luz, a mais bela das coisas existentes e ministra das coisas divinas. Pois, quando vê os movimentos do sol, da lua e dos outros planetas, a revolução inerrante de todo o céu, a ordem que está acima de toda e qualquer descrição, a harmonia e o único verdadeiro e incontestável Criador do mundo, ele reporta a seu único soberano, a razão, o que viu”.
    Em Gênesis, Capítulo 15, versículo 10, está escrito que Abraão trouxe alguns animais e por ordem do Senhor, “partiu-os ao meio e pôs as duas metades uma defronte da outra”.
    Fílon nos oferece, no seu estudo, a seguinte interpretação:
    “A estrutura do corpo, até certo ponto, também é deste tipo em sua composição. Pois as partes afins são como que divididas e separadas em oposição, e inclinam-se e defrontam-se uma à outra por causa da cooperação natural:
  • o que se vê diretamente do meio do nariz divide-se entre os dois olhos, movendo-se continuamente cada um na direção do outro. Porque, quando as pupilas se inclinam para um lado, em certo sentido, olham-se uma para a outra, especialmente quando deparam com algo para ser visto.
  • a audição divide-se em duas orelhas, e cada uma está voltada na direção da outra, tendendo a um só lugar e à mesma atividade.
  • o cheiro divide-se entre as duas narinas, e estando juntas e voltadas para dentro, acolhem os odores mediante um ato comum.
  • as mãos são feitas como irmãos e como partes divididas que estão voltadas uma para a outra, e, por natureza, estão preparadas para receber, entregar e trabalhar.
  • as duas solas cooperam entre si porque cada pé é feito de modo que um se submeta ao outro, e o caminhar é alcançado pelo movimento dos dois, e não pode ser concluído apenas por um deles”.
    Não há que se tomar tais alegorias como verdades absolutas, apenas porque foram escritas por um teólogo/filósofo considerado um dos clássicos da história do conhecimento humano!
    No entanto, estarmos abertos a outras e diferentes visões e interpretações de livros considerados basilares da nossa formação cultural, como a Bíblia, não é no mínimo instigante e agradável?
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Colaboradora e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas Biofísicas (CEPP), com formação acadêmica em Comunicação Social e em Filosofia, ambas pela Universidade Federal da Paraíba.

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